domingo, 23 de outubro de 2011

O Casaco de Marx

   O capital assume a forma de casaco. O casaco não como uma mercadoria que é trocada. E o que define o casaco como uma mercadoria para Marx é que, como tal, ele não pode ser vestido como tampouco pode aquecer. A mercadoria se alimenta de trabalho humano. O caráter contraditório do próprio capitalismo: a sociedade mais abstrata que jamais existiu; uma sociedade que consome, cada vez mais, corpos humanos concretos.
   A mercadoria torna-se uma mercadoria não como uma coisa, mas como um valor de troca.
  • Feitiche: Tudo aquilo a que se atribui poder sobrenatural a feitiço.
  • Feitichismo: Adoração de Feitiches/ Amor, não à pessoa, mas a um objeto de uso dessa pessoa.
   O casaco de Marx aparece apenas para imediatamente desaparecer outra vez, porque a natureza do capitalismo consiste em produzir um casaco não como uma particularidade material, mas como um valor suprasensível.
   Ele tinha usos bem específicos: conservar Marx aquecido no inverno; distingui-lo como um cidadão decente que pudesse entrar no salão de leitura do Museu Britânico. Mas o casaco, qualquer casaco, visto como um valor de troca, é esvaziado de qualquer função útil. 
   Para Marx, o feitichismo não é o problema; o problema é o feitichismo das mercadorias, que é o ato de exploração, que emerge das relações comerciais dos portugueses da África Ocidental nos séculos XVI e XVII.
   Os empreendedores europeus, ao menos após os primeiros estágios comerciais, não feitichizavam objetos; pelo contrário eles estavam interessados em objetos apenas na medida em que eles pudessem ser transformados em mercadorias e trocados para obtenção de lucro no mercado.
   O verdadeiro valor ( isto é, de mercado) do objeto como mercadoria, se fixava, em vez disso, nos valores transcedentais que transformavam o ouro em navio, os navios em armas, as armas em tabaco, o tabaco em açúcar, o açúcar em ouro, e tudo isso num lucro que podia ser contabilizado. O que era demonizado no conceito de feitiche era a possibilidade de que a história, a memória e o desejo pudessem ser materializados em objetos que fossem tocados e amados e carregados no corpo.
   A situação financeira tinha se tornado tão desesperadora que ela tinha não apenas perdido o crédito com o açougueiro e o verdureiro, mas tinha sido obrigado a penhorar o seu casaco de inverno.
   As roupas que Marx vestia determinavam assim o que ele escrevia. Existe aqui, um nível vulgar de determinação material que é difícil até de considerar, embora as considerações materiais vulgares fossem precisamente aquilo que Marx estava discutindo: um casaco como uma mercadoria, no interior do mercado capitalista.
   Marx tinha uma vida em débitos com os padeiros, verdureiros e açougueiros, ou pela penhora de algumas compras anteriores feitas, como em qualquer lar de classe trabalhadora.
   A vida doméstica de Marx dependia, pois, dos “minúsculos cálculos” que caracterizavam a vida da classe operária.
   As roupas escreveu Engels, eram as marcas visíveis da classe: as roupas dos operários estão numa condição muito ruim.
   O fustão era uma roupa grosseira, feita de sarja levemente flanelada. A sua cor era, em geral, de um oliva ou chumbo ou outra cor escura.
   Por muito pouco heróica que seja a sociedade burguesa, em seus primeiros e revolucionários momentos ela se veste com a roupagem do passado de forma a se imaginar a si própria em termos da grande tragédia histórica.
   Uma análise do funcionamento sistemático do capitalismo, ele próprio dependia, principalmente, de práticas pré-capitalistas ou marginalidade capitalistas: pequenas heranças; doações; a escrita de livros que frequentemente tinham que ser subsidiados.
   O padrão usual do comercio de penhores, como tão bem demonstrou Melanie Tebbutt, consistia em que os salários recebidos na sexta ou no sábado eram usados para recuperar as melhores roupas da loja de penhores.
   Pelos quinze shilings que ele obtinha em troca de seus penhores ele tinha que pagar oito pence por semana ( um juro de cerca de 4,5% à semana, 19% ao mês e 23,5% ao ano). Para os Marx, a penhora de suas roupas delimitava suas possibilidades sociais.
   O dono da loja de penhores não iria pagar por memórias pessoais ou de família
   As memórias estavam, assim, inscritas, para os pobres, em objetos que eram assombrados pela perda. Pois os objetos estavam num estado constante de estarem prestes a desaparecer. O Cálculo das prováveis futuras jornadas das roupas e de outros objetos até a loja de penhores estava inscrito na sua compra .
   De forma violenta, numa experiência de gênero, ao associar a troca de mercadoria com o fato de ser mulher, pois as mulheres são descritas como prestes a se tornarem mercadorias, isto já é previsto no fato de que elas partem com suas lembranças materiais, “sem nenhuma luta”, assim como as penhoras transformadas em mercadorias, “vão sem nenhuma luta”! .
   Em 1884, um único dono de loja de penhores de Suderland recebeu, como penhores, mil e quinhentos anéis de noivado e três mil relógios, um sinal evidente da situação desesperadora causada pela depressão econômica.
   Essa tenção endêmica entre, de um lado, formas de lembrança e auto-constituição e, de outro, formas de troca de mercadorias é tratada, por Dickens, em “A loja de penhores”, apenas em termos de corrupção femenina. (...) “uma mulher jovem, cujas roupas, miseravelmente pobres mas extremamente vistosas, lamentavelmente frias mas extravagantemente elegantes, claramente denunciam  sua classe” e, no outro, uma mulher que é  “a mais baixa das baixas; suja, desabotoada, desalinhada e desleixada”.Dickens desloca para as mulheres a relação entre a particularidade do objeto-como-memória e a generalidade do objeto-como-mercadoria, o primeiro aparecendo como amor verdadeiro, o último como prostituição. (...)  penhoradas – roupas e bens domésticos – e também sobre o fato de que a penhora era frequentemente um palco da preparação de comida.  (pág. 69).
   Embora ele fosse um mágico, Hans nunca conseguia cumprir suas obrigações seja para com o demônio seja para com o açougueiro, e era portanto – muito contra a sua vontade – constantemente obrigado a vender seus brinquedos para o diabo
   O momento da venda é o momento de alienação, o momento em que os brinquedos perdem sua mágica, na medida em que eles são transformados em valores de troca.
   A perda, naturalmente, não era a dele próprio; era a perda de toda a classe operária, alienada dos meios de produção. Aquela alienação significava que eles, os produtores da maior multiplicidade de coisas que o mundo tinha conhecido, estavam para sempre situados no exterior daquela plenitude material, seus rostos espiando através das vitrines da loja os brinquedos que eles tinham feito, mas que eram, agora, “propriedade privada”. A propriedade privada da burguesia era comprada ao preço da desapropriação da classe operária relativamente às coisas deste mundo. Na medida em que eles tinham posses, eles a tinham de forma precária.
   Para Marx, a loja de penhores não podia ser o ponto de partida para uma análise da relação entre o objeto e a mercadoria. Existem, penso, duas razões para isto. A  primeira é que o dono da loja de penhores é, da perspectiva de Marx, um agente do consumo e da recirculação de bens e não da sua produção. A segunda é que, embora na loja de penhores vejamos a transformação particular é uma característica tanto das formações pré-capitalistas quanto das capitalistas. Não existe nada de especificamente novo sobre o valor de troca ou, mesmo sobre donos de lojas de penhores.
   O trabalho humano que foi apropriado na sua fabricação, o trabalho que produziu o tecido das camisas e das saias e das roupas de cama em folhas de papel.
   Em O Capital, Marx escreveu sobre o casaco visto como uma mercadoria – como a forma celular abstrata do capitalismo. Ele traçou o valor daquela forma celular a ser apropriada pelo corpo do trabalho alienado (...). Estar sem dinheiro significava ser forçado a desnudar o corpo. Ter dinheiro significava tornar a vestir o corpo. (pág. 78)
   Qual é a criatura que caminha com quatro pés pela manhã, dois ao meio-dia e três à noite? O Enigma da Esfinge é o ser humano! . A Esfinge nos faz ver a singularidade do caminhar.
   A Esfinge era um monstro com rosto de mulher, pés e cauda de leão, e asas de pássaro. É  a descrição de um ser que está, ao mesmo tempo, mais ou menos preso ao chão do que os humanos: mais, porque anda sobre quatro pés; menos, porque as asas indicam que pode voar.
   O enigma de uma criatura que anda sobre dois pés é, pois, resolvido por um homem que tem dificuldades em andar sobre dois pés.
   O enigma da Esfinge simplifica a dificuldade do caminhar. Quando caminhamos, somos como ciclistas.
   Talvez o caminhar se faça sempre sobre três pés – mais a maioria de nós internalizou tão bem o terceiro pé que não estamos mais conscientes dele.
   O enigma da Esfinge nos faz lembrar que um dos aspectos centrais do ser humano é a possibilidade de caminhar.
   O mistério do caminhar é o mistério de um “animal bifurcado” que consegue ficar em pé (quando consegue) apenas pelo sentido incorporado de equilíbrio que a mão de um outro lhe deu.   

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